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Diálogo dos mortos

27 de fevereiro de 2010

LUCIANO. Diálogo dos mortos. Brasília: Editora UnB, 1998. Tradução de Américo da Costa Ramalho.

MORTE, IGUALDADE E CRÍTICA SOCIAL NOS DIÁLOGOS DOS MORTOS DE LUCIANO DE SAMÓSATA

Luciano de Samósata viveu, ao que tudo indica, no segundo século de nossa era, tendo nascido por volta de 125 d. C e morrido depois de 181 d. C. Sua maturidade como escritor aconteceu, provavelmente, durante o reinado de Marco Aurélio (161 a 180 d. C). Além disso, sabe-se que nasceu na Síria, em Samósata, numa família de escultores. Não seguiu a carreira destinada a ele por sua herança, pois durante uma de suas primeiras aulas de escultura quebrou um bloco de mármore e foi duramente repreendido pelos pais. Decidiu, então, dedicar-se aos estudos e trocou sua terra natal pela Grécia. Em busca de conhecimento, viajou por grande parte da Europa: foi para a Gália e Itália, ganhando a vida como advogado. Tornou-se um famoso orador, que resolveu abandonar sua retórica pela filosofia, retornando a Atenas e abandonando todo seu sucesso. Escreve textos satíricos e, no fim de sua vida, com dificuldades materiais, assume um cargo da burocracia oficial do Império no Egito.1

Luciano, em algumas de suas obras, procurou diferenciar o historiador do poeta, definindo o primeiro a partir de negações com relação ao segundo, que por sua vez só é possível de se delimitar a partir do primeiro. Quer dizer, para existir o historiador é necessário ter o poeta, e vice-versa. Este teria uma pura liberdade, sendo-lhe permitido escrever de tudo, enquanto o historiador possui uma liberdade pautada pela verdade, ou seja, ele é livre enquanto busca escrever a verdade. Mas o público receptor da obra historiográfica não deve ser procurado no presente; ele está no futuro. A obra do historiador deve, então, se preocupar em ser utilitária para uma pessoa que venha a lê-la futuramente e, para isso, deve ser uma obra perpétua, que busque a eternidade. Nesse sentido é que está a liberdade do historiador: ele não deve se preocupar com o que as pessoas do presente vão achar de seus escritos, ele não deve, assim, deixar de escrever verdades. Preocupando-se com o futuro, ele estará livre de constrangimentos, sendo-lhe permitido escrever qualquer coisa, desde que busque a verdade.

O poeta não precisa ter a verdade como algo a ser buscado em seu texto. Assim, ele pode escrever qualquer coisa, gozando de uma pura liberdade. Contudo, os escritos de Luciano se diferem dos demais poetas. Em primeiro lugar, ele escreve em prosa, não em poesia, como acontece na maior parte dos casos. A prosa era um gênero, até então, historiográfico, enquanto a poesia jogava com a fantasia, mas sem explicitar ao leitor sua condição. Luciano, ao optar pela prosa resolveu deixar claro ao seu leitor que seus textos eram uma ficção, uma espécie de mentira:

“‘Numa coisa serei verdadeiro: dizendo que minto’. O leitor, portanto, ele continua com surpreendente clareza, não deve crer em nada do que conta, pois ele, Luciano, fala de coisas que jamais viu, jamais experimentou, jamais ouviu da boca de ninguém, que não existem de todo e que não podem existir. Essas declarações, de inegável importância, marcam nada menos que uma espécie de descoberta da ficção na Grécia, a partir da definição de um estatuto que lhe seja próprio e que a distinga, ao mesmo tempo, tanto do discurso mentiroso dos antigos poetas, quanto dos discursos verdadeiros de historiadores e filósofos”.2

Neste trabalho abordarei um de seus escritos mais famosos e influentes, Diálogos dos mortos3, que aproveita seu gênero de ficção para fazer a crítica. Luciano preocupa-se com a crítica pura, quer dizer, não há nenhuma hipótese de transformação ou revolução em seus escritos, apenas a crítica nua e crua, principalmente a crítica social, tratando da desigualdade entre ricos e pobres.

É importante, então, tentar definir qual é o público para o qual Luciano escreve. Uma resposta óbvia já diz bastante, e é praticamente suficiente: ele escreve para aqueles que sabem ler. Agora, façamos outra questão: quem sabe ler no século II d. C. na Grécia? As classes de cidadãos abastados, em geral, filósofos, retores e outras pessoas que podem ser incluídas num campo “intelectual”. Essas são, justamente, as pessoas às quais as críticas se destinam: Luciano critica os hábitos das altas esferas, escrevendo para elas. Para conseguir fazer tal coisa, Luciano usa o riso como arma: tornando o rico alvo do escárnio, do riso, rebaixá-o a tal nível que ele fica sem condições de defesa. Nos Diálogos dos mortos esse recurso é usado o tempo todo, como mostrarei.

No diálogo X, Caronte, o barqueiro do Hades, explica a um morto como deve-se embarcar para a viagem:

Caronte – Eu explicar-vos-ei. É preciso que embarqueis nus, deixando todo esse supérfluo na margem porque, assim como estais, dificilmente o barco poderá receber-vos.

E tu, ó Hermes, trate, a partir de agora, de que nenhum deles que não venha em pelo seja percebido, depois de jogar fora, como eu já disse, a bagagem. De pé firme, junto à escada, passe-os em revista, receba-os, forçando-os a subirem nus”.4

Todos devem entrar despidos no Hades, fazendo com que os ricos, como castigo por conta de sua riqueza, tenham que se desfazer dela. A riqueza, entende Luciano, só se entende como tal a partir do olhar do outro, da ostentação perante um outro de classe e riqueza inferior. A condição imposta pela pobreza é, de fato, dura e amarga, acarretando uma vida árdua de trabalhos que não é capaz, ao menos, de garantir como que viver, é uma vida de tristeza e desânimo, mas que, no entender de Luciano, poderia ser melhor, mais suportável, se os ricos não ostentassem sua riqueza, sua felicidade, sua vida de fartura. “De fato, essa visão ostensiva da riqueza de poucos oposta à pobreza da maioria é que torna a situação absurda”.5

Nesse contexto, Luciano procura fazer a crítica à riqueza, desejando atingir as classes abastadas. Ele enfatiza, em suas obras, a falta de sentido das diferenças de fortuna, sublinhando como no Hades reina a isotimia, como fica evidente nos Diálogos dos mortos:

Hermes – Então, Lampico, apresentas-te com tanta coisa?

Lampico – O quê? Devia chegar nu, ó Hermes, um homem com funções de tirano?

Hermes – Tirano, coisa nenhuma, mas morto, sim! Portanto, jogue fora tudo isso!

Lampico – Veja, lá vai a riqueza!

Hermes – Jogue fora também a vaidade, ó Lampico, e a altivez. Caindo aqui dentro, elas farão peso no barco.

Lampico – Então, deixe-me ao menos ficar com o diadema e o manto.

Hermes – De modo nenhum, mas jogue fora isso também!

Lampico – Que seja! O que mais ainda? Lancei tudo fora, como vês.

Hermes – E a crueldade e a insensatez e a insolência e a cólera, lança tudo isso fora também!

Lampico – Veja bem, estou despido”.6

Os tiranos devem se desfazer de tudo, da glória, do poder, da ostentação, da riqueza, enfim, de tudo. Enquanto isso acontece aos ricos, com os pobres, despossuídos de qualquer coisa, resta apenas entrar na barca e pagar um óbolo ao barqueiro Caronte. A morte, em Luciano, funciona, então, como algo nivelador. Todos ficam absolutamente iguais, até mesmo as pessoas bonitas ficam com a mesma aparência dos outros: todos são esqueletos carecas, com furo no lugar dos olhos e o nariz achatado, tornando-se praticamente impossível a diferenciação estética.

Esse efeito nivelador tem um caráter carnavalesco em sua forma, como mostrou Mikhail Bakhtin:7

“Elimina-se toda distância entre os homens e entre em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre os homens. (…) Os homens, separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em livre contato familiar na praça pública carnavalesca.

(…) No carnaval forja-se, em forma concreto-sensorial semi-real, semi-representada e vivenciável, um novo modus de relações mútuas do homem com o homem, capaz de opor-se às onipotentes relações hierárquico-sociais da vida extracarnavalesca”.8

Essa é a proposta da crítica social de Luciano em Diálogo dos mortos, mostrar como as riquezas terrenas e as diferenças hierárquicas são supérfluas, pois todos morrem, todos são iguais. Brandão faz uma análise muito interessante a esse respeito: ele diz que nos diálogos de Luciano se elabora a imagem “do grande teatro do mundo”: os homens são como atores, que representam o script distribuído aleatoriamente, por um determinado tempo. Depois os papéis trocam e qualquer um pode representar qualquer papel. “É apenas a partir da indumentária que se estabelecem as diferenças, pois, uma vez deixada a cena, cada homem volta a ser como era antes de nascer, não diferindo em nada de seu vizinho”.9

Assim, até mesmo os filósofos têm que se desfazer de sua sabedoria:

Hermes – (…) E este, grave, a julgar pela postura, arrogante, de semblante carregado, metido nas suas reflexões, quem é ele, que assim deixou crescer a barba?

Menipo – Um filósofo, ó Hermes, ou antes, um impostor, pleno de charlatanice. Assim, fá-lo despir-se também! Verás muitas coisas, e bem risíveis, que ele esconde sob o manto.

Hermes – Põe à parte a postura, em primeiro lugar, e depois tudo isso mais! Ó Zeus, quanta fanfarronice ele transporta, e quanta cretinice, astúcia, glória vã, perguntas insolúveis, discursos espinhosos e conjecturas intrincadas. E ainda a grande quantidade de esforço vão, a grande tagarelice, as ninharias, a pequenez de espírito, e, por Zeus, todo esse ouro que está à vista e a vida regalada, o descaro, a preguiça, o gozo sensual e a moleza. Nada disso me passou despercebido, por melhor que o escondas. Jogue fora também a mentira, a presunção e a crença que és melhor do que os outros, por que se embarcares com tudo isso, qual o navio de cinquenta remadores, capaz de te receber?”10

Mesmo o filósofo precisa se desfazer de sua riqueza, puramente intelectual e sem sentido no Hades. A isotimia na morte é completa, ninguém pode se sentir superior ao outro. A morte não procura vingar-se de ninguém, tornando felizes os infelizes e infelizes os felizes. Ela, apesar de ser indesejável, tem sobre a vida, segundo Luciano, a vantagem de tratar todos de modo equânime. Se há alguma mudança no destino das pessoas, isso só acontece com os ricos e os homens de cultura, obrigados a se desfazerem de tudo.

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NOTAS:

1BRANDÃO, Jacyntho L. A poética do hipocentauro. MG: Editora UFMG, 2001.

2Idem. p. 48.

3A edição utilizada é de LUCIANO. Diálogo dos mortos. Brasília: Editora UnB, 1998. Tradução de Américo da Costa Ramalho.

4LUCIANO. op. Cit. p. 32.

5BRANDÃO. op. Cit. p. 155.

6LUCIANO. op. Cit. 33.

7BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. Tradução de Paulo Bezerra.

8BAKHTIN. op. Cit. p. 140.

9BRANDÃO. op. Cit. p. 166.

10LUCIANO. op. Cit. 35.