Recordações do escrivão Isaías Caminha

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BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Alfredo Bosi, na introdução que faz das Recordações do escrivão Isaías Caminha, obra de estreia de Lima Barreto, afirma, logo no começo de seu texto, que o autor “adota os recursos da escrita realista autobiográfica, já trabalhada em tom reflexivo por Flaubert na Educação Sentimental e nos romances em primeira pessoa de Dostoiévski Humilhados e ofendidos e Recordações da casa dos mortos.”[1] De fato, são muitas as referências da vida de Lima Barreto presentes na história de Isaías, mas creio que o romance acaba se esquivando um pouco dos relatos autobiográficos.

Penso que Lima Barreto se aproxima muito mais de Dostoiévski que de Flaubert. É verdade que há um realismo em sua obra, mas há passagens importantes de Recordações que são citações indiretas ao escritor russo. Um leitor atento de Memórias do subsolo logo nota que na seguinte passagem da via de Caminha há referência à vida daquele baixo funcionário dostoievskiano:

“Num relâmpago, passaram-me pelos olhos todas as misérias que me esperavam, a minha irremediável derrota, a minha queda aos poucos – até onde? até onde? E ficava assombrado que aquela gente não notasse o meu desespero, não sentisse a minha angústia… ‘Imbecis!’, pensei eu. Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como galerianos à calceta!” (p. 121).

A camada inferior à qual está submetida o funcionário de Memórias de subsolo é, de certa maneira, reinterpretada por Lima Barreto. A Rússia de meados do XIX era uma sociedade extremamente hierarquizada e é isso que incomoda o herói da novela de Dostoiévski, pois ele é culto, inteligente, com boas ideias, dignidade e um baixo funcionário – o que o torna desprezível a priori. No Rio de Janeiro de Lima Barreto acontece algo semelhante. Isaías é desprezível também e igualmente culto, com boas ideias e inteligente. O Brasil do final do XIX, republicano já, não tem uma hierarquia oficialmente definida, mas há uma certa cultura, uma certa forma de se organizar a sociedade, que exclui o negro e o despreza. Isaías Caminha, como Barreto, é negro e isso já basta para que seja desqualificado a priori, tal como o personagem de Dostoiévski.

Aliás, na novela russa o protagonista, em certa passagem, anseia por uma briga; enquanto anda pelas ruas de São Petersburgo, vê um homem sendo jogado pela janela de um casa de bilhas e deseja ser jogado também, tal era o seu sentimento de angústia e indignação. Ele entra no estabelecimento, procurando briga:

“Logo de início, um oficial teve atrito comigo.

Eu estava em pé junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por inadvertência, e ele precisou passar; tomou-me então pelos ombros e, silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em que estava, colou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me notasse. Até pancadas eu teria perdoado, mas de modo nenhum poderia perdoar que ele me mudasse de lugar e, positivamente, não me notasse.

O diabo sabe o que não daria eu, naquela ocasião, por uma briga de verdade, mais correta, mais decente, mais – como dizer? – literária! Fui tratado como uma mosca. Aquele oficial era bem alto, e eu sou um homem baixinho, fraco. A briga, aliás, estava em minhas mãos: bastava protestar e, naturalmente, seria posto janela afora. Mas eu mudei de opinião e preferi… apagar-me, enraivecido.”

O funcionário fica indignado porque não é sequer notado pelo oficial, que simplesmente o pega pelos ombros e afasta de seu caminho, como se fosse uma mosca que se espanta da mesa. De pronto, ele deseja brigar com o oficial, mas “preferi… apagar-me, enraivecido.” No romance de Lima Barreto, em certa altura da narrativa, Isaías sente algo parecido quando anda no bonde:

            “Um sujeito entrou no bonde, deu-me um grande safanão, atirando-me o jornal ao colo, e não se desculpou. Esse incidente fez-me voltar de novo aos meus pensamentos amargos, ao ódio já sopitado, ao sentimento de opressão da sociedade inteira… Até hoje não me esqueci desse episódio insignificante que veio reacender na minha alma o desejo feroz de reivindicação. Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, a servir de joguete, de irrisão a esses poderosos todos por aí.” (p. 122).

Ambos os personagens desejam serem notados. Aqueles que esbarram neles, que os tiram do caminho, não os percebem enquanto pessoas, mas como algo desprezível. Pedir-se-ia desculpas a alguém que incomodamos; mas, para isso é necessário ver o outro – certamente o oficial russo e o passageiro do bonde não viram o baixo funcionário e Isaías, pelo menos não como pessoas.

O personagem de Dostoiévski, depois do episódio ocorrido na casa de bilhar, anseia por um pedido de desculpas que não vem. Ele, então, passa a frequentar a Avenida Niévski enquanto planeja um modo de se fazer notar pelo oficial e acaba percebendo que seu “inimigo” frequenta a mesma Niévski. Seu plano passa a ser trombar com esse oficial, a fim de se fazer notar:

“Do modo como eu me preparava e ajeitava para aquilo, parecia que mais um pouco e íamos dar o encontrão; mas reparava e… mais uma vez eu tinha cedido caminho, e ele passava sem sequer me notar. […] De uma feita, até me decidira de vez, mas, por fim, apenas caí diante dele, porque, no instante derradeiro, à distância de uns dois vierchokes, faltou-me coragem.”

Isaías Caminha também tem essa ânsia por ser notado, por ser considerado uma pessoa nessa sociedade brasileira do início do século XX, mas como ele era desprezado…

“Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim o critério da minha existência de fato. Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiram-me uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda parte, graduando os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente.” (p. 121).

Certamente que essas passagens são apenas fragmentos dos textos analisados, mas eles servem para exemplificar o ponto de aproximação que existe entre Lima Barreto e Dostoiévski. E, assim como o romancista russo, o brasileiro não irá se preocupar em fazer um romance autobiográfico. Se, por ventura aparecem elementos particulares do autor na vida de suas personagens, isso não faz do romance autobiográfico. Essas referência servem como pontos de encontro entre a ficção e a realidade. Um bom leitor de Dostoiévski certamente é capaz de identificar diversas passagens de seus escritos que foram inspirados em acontecimentos de sua vida – como a novela Um jogador. Entretanto, não é o relato autobiográfico que está em jogo, mas a percepção da sociedade e dos sentimentos presentes nela. Ao descrever o acontecimento na casa de bilhar, o autor russo não quer descrever unicamente os acontecimentos, tal como o faria um historiador do século XIX; ele está preocupado em descrever um estado de espírito.

Da mesma forma, Lima Barreto não se preocupa com as referências autobiográficas. Se fosse assim, seu Recordações de Isaías Caminha seria um romance duplamente autobiográfico. Ao que me parece, a preocupação do autor, aí sim, tanto de Lima Barreto, quanto de Isaías Caminha, é descrever um certo estado em sociedade; não são acontecimentos que compõem o principal da obra, mas um certo sentimento. Numa passagem metalinguística isso parece ficar evidente:

“Penso – não sei por quê – que é este meu livro que me está fazendo mal… E quem sabe se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens de que nasceram não é fazer com que, obscura e confusamente, me venham as sensações dolorosas já imortais? Talvez mesmo seja angústia de escritor, porque vivo cheio de dúvidas, e hesito de dia para dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valor literário que me preocupa; é sua utilidade para o fim que almejo.” (p. 136).

Pode-se imaginar o que deixa Isaías mal. As passagens citadas até aqui são de sofrimento. Vale lembrar que as recordações estão sendo escritas por Isaías na medida em que lemos o livro e, portanto, as sensações presentes no personagem são atuais (na medida em que tanto o Isaías personagem, como o autor das recordações são o mesmo e, em nenhum momento se faz presente Lima Barreto).

Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto pretende fazer um romance sobre o preconceito, a humilhação social, sobre as cordas, roldanas e contrapesos da sociedade. As primeiras páginas do livro dão o tom. Isaías descreve como foi tratado mal ao chegar no Rio de Janeiro. As pessoas, sem o conhecerem, o tratavam como um inferior e ele, inocente e sem saber o motivo daquele tipo de tratamento, questiona-se sobre a próprio fisionomia, a própria moral, como se o problema estivesse realmente nele e não na descriminação social do negro.

Como em Dostoiévski, Recordações usa elementos autobiográficos e acontecimentos verdadeiros (como a referência à Revolta da Vacina, presente como a lei da obrigatoriedade dos sapatos no romance) para tratar de um assunto que está fora da pessoa Lima Barreto e Isaías Caminha; o livro trata do preconceito, do sentimento de quem é atacado por isso.


[1] BOSI, Alfredo. “Figuras do eu nas recordações de Isaías Caminha”, In: BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 10.

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Uma resposta to “Recordações do escrivão Isaías Caminha”

  1. blogs oswald Says:

    Eu estou em dívida com Barreto, porque, como apaixonado pela literatura brasileira de 30, tenho uma enorme estima pela figura do “derrotado”, e sei que ela deriva, pelo menos em parte, da obra do escritor carioca. Pelas suas citações, vejo que a sondagem psicológica em “Isaías Caminha” é bem superior ao que eu imaginava. Tenho em minha conta sempre um Barreto culto, interessante pelas suas posições, mas escritor que fica em falta com a “pegada” – ou seja, sempre achei que fosse muito menos que um imitador de Flaubert, pior até que Aluísio. Isso por conta da leitura do “Policarpo Quaresma” e de narrativas como “A nova Califórnia” e “O homem que sabia javanês”, que considero bem ruinzinhas, francamente. Quanto à filiação com o romance russo, impressiona saber que Barreto foi um dos primeiros a sacar os ventos do Leste e ler Dostoiévski, que entrou pra valer no Brasil só a partir de 30, com traduções indiretas. Gostei muito do post, a aproximação é bem pertinente e instigante. Só não digo que irei direto ao Barreto, porque tem uma pilha de coisas me esperando aqui para ser lida. Abraço, querido Sekkel, voltarei mais vezes para conferir essa beleza de blog.

    Adriano.

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